Um texto de: Francine da Silva Alves
O referente tema foi escolhido para a elaboração deste texto por conta de uma inquietação sobre a implementação da política de saúde da população negra. Quando se iniciou esse processo? Como tem sido feito? Por que precisamos de uma política de saúde específica para os negros? Farei um breve relato sobre as características do racismo no Brasil e continuar com as reflexões sobre a luta contra o racismo e a introdução da política de saúde para a população negra.
Sabemos que no Brasil a característica mais apontada sobre o racismo é seu caráter não oficial, é o aspecto sutil, cordial, é o corriqueiro, e se utiliza, por exemplo, de brincadeiras, piadas, omissões e apelidos que parecem “inocentes”. A lei conferiu liberdade jurídica aos escravizados, mas estes nunca foram integrados na sociedade politicamente, culturalmente, economicamente e socialmente, pois não se realizaram projetos de assistência ou leis para a facilitação da inclusão dos negros à sociedade, fazendo com que continuassem a ser tratados como inferiores e tendo traços de sua cultura e religião marginalizados, criando danos até os dias atuais; seguido da ideologia de branqueamento, apoiada pelo governo que facilitava a entrada de imigrantes europeus em terras brasileiras, como uma forma também de extermínio, de genocídio do povo negro, que suscitou na mestiçagem, vista também como clareamento da população, criando raízes profundas na sociedade brasileira, fazendo com que os negros abandonassem sua cultura africana, se aceitassem como inferiores e subordinados, adotando os valores brancos como o ideal, e como se não bastasse foi estabelecido aos negros, por muitas pessoas, o papel de racista, o papel do vitimista, e não o de vítima do racismo, que é o que realmente somos.
Mas será que deveríamos “aceitar” ou deveríamos sempre que tivermos oportunidade apontar que esse racismo sutil é uma violência suprema, uma rejeição total, é genocida com as vitimas? Podendo até considerar pior que o racismo escancarado, não querendo colocar em uma escala do que é melhor ou pior, mas quando você é atacado diretamente, é mais fácil saber como poderia agir naquela situação e se sabe exatamente que sofreu racismo, diferente de quando se é atacado através das “brincadeirinhas”, pois muitas pessoas não percebem que é uma atitude racista e deixam “passar”, ou ficam na dúvida se é racismo ou não, muita das vezes que se é questionada essas brincadeiras, quem questiona é rotulada como vitimista, como “mimimi”, e são ditas frases como “a sociedade está chata, não se pode brincar mais”, então algumas pessoas preferem se calar a serem taxadas como “chatas”, e os estresses de lidar com essa discriminação é que causam prejuízos na saúde dos negros; esse racismo não admitido dá menos oportunidades e afeta todas as dimensões da vida dos negros.
E se tratando da questão do negro ser taxado como racista, como nessa frase corriqueira: “O pior racista é o negro” deveríamos saber ou nos atentar e está sempre pontuando que o racismo é sistema de poder, e até onde sei os negros não tem poder em lugar algum. O racismo está entranhado de forma estrutural na nossa sociedade, trazendo consequências práticas. Ele surgiu uma vez só, então o negro não tem poder de ser racista em nenhum lugar, o racismo negro ou racismo ao contrario não tem possibilidade de existir porque a história não pode ser reinventada, como afirma Carlos Moore em uma entrevista postada no portal Geledés:
“Racismo negro não é nem possível porque os negros não podem reinventar a história. O racismo surgiu uma vez só. Não posso nem fazer comentários sobre algo tão absurdo, porque eu estaria na defensiva e é isso o que o racista quer: jogar essa acusação para que você se defenda. Eu não perco tempo com essa questão, eu coloco todo o meu tempo no ataque ao racismo.” (MOORE, 2012)
“Racismo negro não é nem possível porque os negros não podem reinventar a história. O racismo surgiu uma vez só. Não posso nem fazer comentários sobre algo tão absurdo, porque eu estaria na defensiva e é isso o que o racista quer: jogar essa acusação para que você se defenda. Eu não perco tempo com essa questão, eu coloco todo o meu tempo no ataque ao racismo.” (MOORE, 2012)
Então, a luta contra o racismo foi iniciada desde a chegada do primeiro africano aqui no Brasil, quando se perceberam como povo escravizado, como afirma Fanon “O negro nunca foi tão negro quando a partir do momento em que foi denominado pelos brancos” (FANON, 1983: p.212), deste modo foram criadas várias formas de organização pacíficas, com resultados positivos, mas sentindo falta da participação de mais aliados, pela questão do não se reconhecer como tal. Fomos ensinados a nos odiar, a não se aceitar, a acreditar que ser negro não é bom, não é normal, pela supremacia da raça branca, a eugenia, que estabeleceu que somente através dos “bons genes” é que a humanidade atingiria a evolução. Através de um raciocínio ocidental, mais especificamente europeu, esses bons genes seriam somente a raça branca. E essa ideia deu origem, a diversas violações de direitos humanos. Não tem como se amar e amar sua raça se por muito tempo às pessoas negras foram denominadas e tratadas como animais, e até hoje são sempre apontadas como inferiores.
Uma forma de potencializar a luta contra o racismo, a desigualdade, a discriminação seria com os direitos humanos, que veio com o intuito de proteger qualquer cidadão contra isso. Uma definição dada para esses direitos “consistem em direitos naturais garantidos a todo e qualquer indivíduo, e que devem ser universais, isto é, se estender a pessoas de todos os povos e nações, independentemente de sua classe social, etnia, gênero, nacionalidade ou posicionamento político”. Mas já sabemos que isso não acontece, isso não ocorre na prática e nem sempre é motivo de preocupação ou considerado algo ruim. Um exemplo simples de invalidação dos direitos e que a maioria das pessoas possuem acesso é a mídia, que é considerada o mecanismo mais importante para o avanço da democracia, porém é a maior exploradora da violência contra os negros no Brasil e de uma maneira que acaba naturalizando o genocídio da população negra. Outro fator é a incompreensível postura dos governos instalados no Brasil, que não fazem nenhuma questão de aplicar políticas que sejam próximas da verdadeira necessidade da população negra aqui, e mesmo assim fazem com que as pessoas acreditarem que estão se esforçando para a execução dos direitos humanos, que tem como característica principal a desigualdade, porque estabelecem “prioridades” para uma realidade nada condizente com a nossa. A escravidão foi o mecanismo criador das desigualdades sociais, foi ela quem desenhou nossa realidade social e parece que essa questão passa despercebida dentro do Estado que instaurou uma política de direitos humanos universal, mesmo sabendo do contexto histórico de um povo que envolve a escravidão, preconceitos, traumas, psicoses, racismo, negação de direitos, exclusão. Então esse lema de que “todos somos iguais perante a lei” é só mais um truque, um fundamento inútil, pois este tratamento de forma geral deslegitima aqueles que por anos tiveram seus direitos anulados, somente por serem negros. Não se atentam para o fato de que negros e brancos possuem necessidades diferentes, a necessidade de um negro nunca vai ser igual à de um branco que nunca sofreu discriminação racial.
Adotando uma nova perspectiva de direitos humanos, proposta pelo sociólogo Boaventura de Souza Santos, que se posiciona contrariamente à perspectiva dominante atual, de direitos humanos universal. Ele pontua a necessidade de repensar as formulações teóricas atuais e implementar um dialogo com outras comunidade no mundo. Seu maior objetivo é repensar a construção de uma perspectiva de direitos humanos que até então não atende todas as comunidades no mundo. Tratando da complexidade dos direitos humanos, mais precisamente em sua execução, ele fala que os direitos humanos podem ser uma globalização hegemônica (localismo globalizado), pensamento ocidental, ou globalização contra-hegemônica (cosmopolitismo), na luta contra a opressão e apresentando propostas de concepções não-ocidentais de direitos humanos, com diálogos interculturais sobre o assunto e levando em consideração as diferentes concepções de dignidade humana, e para ele se tornar somente uma globalização contra-hegemônica, que seria uma atividade de uma política emancipatória, é necessário evidenciar as condições culturais globais, em suas palavras:
“O multiculturalismo, tal como eu o entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de urna política contra-hegemónica de direitos humanos no nosso tempo”. (SANTOS, 1997, p. 18-19)
“O multiculturalismo, tal como eu o entendo, é pré-condição de uma relação equilibrada e mutuamente potenciadora entre a competência global e a legitimidade local, que constituem os dois atributos de urna política contra-hegemónica de direitos humanos no nosso tempo”. (SANTOS, 1997, p. 18-19)
Então, como os direitos humanos têm ideias dominantemente ocidentais, possuem tendências hegemônicas e ocasiona um choque de civilizações, evidenciar as condições culturais poderia ser uma alternativa para mudar essa tendência, pois estaríamos conceituando os direitos humanos como multiculturais, realizando uma relação equilibrada entre competência global e legitimidade local.
Enquanto essa perspectiva não é concretizada, e fazendo um recorte sobre saúde do povo negro, usando o texto Ubuntu: o direito humano e a saúde da população negra, da autora Denize de Almeida Ribeiro, que trás reflexões sobre o Processo de implantação da Política de Saúde da População Negra em Salvador como parâmetro, percebo que essa é uma das formas de quebra da hegemonia, porque são políticas específicas para uma parte da sociedade, mas que só está acontecendo por conta de organizações, movimentos negros representantes dessas pessoas, que acreditam que são possíveis melhorias em relação à saúde, equidade, desigualdades, religião, violência, fome. E são essas organizações que nos fazem entender quem realmente somos, de onde viemos e o porque de tanta falta de amor para com o nosso povo, por isso a importância de nós construirmos alianças internas, por conta da situação de vida comum imposta pela nossa cor, que é a característica fenotípica com qual somos estigmatizados, nas palavras de Ribeiro:
“...sem dúvida, a diáspora nos fez enfrentar nossas contradições internas e nos fez olhar, a partir dos olhos do racismo, não só para os desafio externos pautados por outros grupos étnicos, mas também nos fez repensar nosso ser no mundo, nos fez entender que precisávamos construir alianças internas não mais pautadas em características culturais próximas, mas na situação de discriminação comum imposta pela cor de nossos corpos, ou seja, por nossas características fenotípicas, uma marca com a qual nos rotularam.” (RIBEIRO, 2012, p. 125)
“...sem dúvida, a diáspora nos fez enfrentar nossas contradições internas e nos fez olhar, a partir dos olhos do racismo, não só para os desafio externos pautados por outros grupos étnicos, mas também nos fez repensar nosso ser no mundo, nos fez entender que precisávamos construir alianças internas não mais pautadas em características culturais próximas, mas na situação de discriminação comum imposta pela cor de nossos corpos, ou seja, por nossas características fenotípicas, uma marca com a qual nos rotularam.” (RIBEIRO, 2012, p. 125)
Portanto, um motivo do porque precisamos de uma política de saúde especifica para os negros, já foi citado, que é o de termos os direitos humanos com uma política universal, mas que não é assim na prática, logo isso afetará em todas as divisões dentro desses direitos, como na educação, segurança, saúde, etc. E quando se tem dados em diversos indicadores oficiais que avaliam o grau de desenvolvimento social, como o Indicie de Desenvolvimento Humano (IDH), em que os negros são a maioria em número populacional e ocupam as posições mais baixas é nítido que tem algo errado, mais uma prova da inviabilidade dos direitos humanos.
Foram os indicies de 2002 de Salvador-Ba, que apontavam os negros como a maioria dos analfabetos, “usufruíam” de apenas 1% na distribuição de renda, os que tinham menor escolaridade, menores oportunidades de ocupação laboral, poucas oportunidades de ascensão social, os desempregados também eram maioria negros e em relação ao salário as pessoas negras recebiam metade do que pessoas brancas recebiam, que incentivaram a implementação de ações que estivessem inseridas na Política Municipal de Saúde de Salvador em todas as áreas e que se fundamentassem no Combate ao Racismo, pois se entendia que a discriminação racial era o principal determinante social diante desse quadro que vem se perpetuando há tantos anos na Bahia, uma iniciativa do Movimento Negro Unificado (MNU).
Esse processo não se deu de forma tranquila, a discussão sobre implementação desta politica iniciou em 2004, e veio se concretizar em 2007. E eram sempre os militantes do movimento negro que contribuíam para as propostas, pois mesmo sendo uma luta do movimento negro, as pessoas que estavam à frente, as pessoas responsáveis, estruturalmente, nas instancias governamentais dos setores não eram as negras. E ressaltando sempre a necessidade de se continuar pautando esse tema, para reverter o quadro de 500 anos de opressão e negação das necessidades e demandas de um povo de grande importância em nosso país.
Outro ponto complicado, porque temos a frente das instâncias governamentais desses setores pessoas que não participam das lutas, não são negras, e maioria não acredita nem na existência do racismo no Brasil. Considerando isso um desrespeito à luta histórica dos movimentos sociais, não apenas por não serem negros, mas porque ocupam esses lugares apenas por considerarem que o lugar de comando são delas e que os negros não tem capacidade de estarem responsáveis por esses papeis, não só na área da saúde, mas em diversos outros mecanismos de luta contra o racismo e desigualdades, Denize Ribeiro define essa situação como síndrome da Princesa Isabel:
“Se caracteriza por um súbito processo de conscientização das pessoas não negras: estas se mostram tão sensibilizadas com as desigualdades que se entregam quase “voluntariamente” à causa. Embora confessem, algumas vezes, que não conhecem o tema ou que estão se apropriando dele agora; ou ainda que não estão certas de que seja necessária uma política para tal nem que exista racismo no Brasil, senão partindo do próprio negro. Mas essas pessoas têm certeza de que podem estar à frente dessas ações melhor do que qualquer outra, pois querem contribuir com a causa desse lugar como dirigentes das demandas de negros e negras.” (RIBEIRO, 2012, p. 137)
“Se caracteriza por um súbito processo de conscientização das pessoas não negras: estas se mostram tão sensibilizadas com as desigualdades que se entregam quase “voluntariamente” à causa. Embora confessem, algumas vezes, que não conhecem o tema ou que estão se apropriando dele agora; ou ainda que não estão certas de que seja necessária uma política para tal nem que exista racismo no Brasil, senão partindo do próprio negro. Mas essas pessoas têm certeza de que podem estar à frente dessas ações melhor do que qualquer outra, pois querem contribuir com a causa desse lugar como dirigentes das demandas de negros e negras.” (RIBEIRO, 2012, p. 137)
E outro fato incrível, muito difícil de compreender é que até mesmo nas questões de luta histórica o lugar reservado as negras e negros permanecem sendo o lugar de subalternidade. Como pode isso? Quem é que vai saber mais de nossas dores, mais de nossas lutas do que nós mesmos? Um ponto contraditório também, porque ao mesmo tempo que eles sabem que precisam dos militantes de movimentos negros para ajudar na criação das propostas, eles voltam e dizem que não temos capacidade de estar a frente de nossas lutas. E como fica toda a experiência dos negros a frente do comando de comunidades quilombolas, terreiros de candomblé, organizações da sociedade civil, pequenas empresas, ocupações, invasões etc., Essas experiências não são válidas? A nossa resistência e luta contra um sistema hegemonicamente racista já nos habilita para qualquer atividade que o branco acredita ser somente para ele, acreditam e querem fazer até os negros acreditarem que o nosso contexto histórico só serve para nada além de comandar suas cozinhas. Creio que seja por medo de perder seus privilégios, que foram adquiridos através de anos de exploração, da deslegitimação dos negros, que se perpetuam até hoje. Querem fazer com que a gente acredite que eles estão nos ajudando a sair da condição que nos foi imposta, mas por trás dessa boa vontade vem à ideia de que só eles podem ser protagonista, pois nos consideram incapazes e inexperientes, e se questionados vem a afirmação de que estamos sendo racistas ao contrario, algo contraditório também, porque na maioria das vezes essa afirmação vem de pessoas que não acreditam que existe racismo, senão partindo do próprio negro.
Desta forma, o poder, esse sim, deveria ser exercido como um direito humano universal, porque a luta por equidade, que é o uso da imparcialidade para reconhecer o direito de cada um, usando a equivalência para se tornarem iguais, é uma luta por espaço de poder e poder político para tentar acabar com o racismo, para isso acontecer precisamos propor outras formas do exercício desse poder, começando compartilhando espaços que temos acesso com pessoas que não tiveram a oportunidade de está ali também e que vivenciam das mesmas dores, causada pela discriminação, e as formas de subalternidade. Devemos aprender com o passado para entender o presente e moldar o futuro. Precisamos nos atentar diante da tarefa de construir juntos uma sociedade melhor, buscando referências que nos façam acreditar e afirmar ideias que se pautem nos direitos humanos compartilhado com todos.
Referências:
Carlos Moore destrói senso comum sobre o racismo. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/carlos-moore-desconstroi-senso-comum-sobre-o-racismo/>. Acesso em: 24 de março de 2018
Constituição Federal (Texto compilado até a Emenda Constitucional nº 97 de 04/10/2017). Art. 5º. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_04.10.2017/art_5_.asp>. Acesso em: 24 de março de 2018.
FANON, Frantz (1983). The wretched of the earth. Harmondsworth, Penguin.
O que são Direitos Humanos? Disponível em: <https://nacoesunidas.org/direitoshumanos/>. Acesso em: 24 de março de 2018.
RIBEIRO, Denize de Almeida. Ubuntu: o direito humano e a saúde da população negra. In: Saúde da população negra. 2º edição, 2012. Brasília: Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, p. 122
SANTOS, Boaventura de Sousa. “Por uma concepção multicultural de direitos humanos”. In: Reconhecer para libertar: os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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