quarta-feira, 4 de outubro de 2017

Uma Reflexão Sobre Identidade


                                                                             
Autora: Edna Balbina dos Anjos dos Santos[1]


[1] Quilombola de Baixa Grande no município de Muritiba

Semana passada durante o encontro do Novas Cartografias Sociais que aconteceu em Juazeiro Estado da Bahia, pude iniciar uma reflexão alterada sobre a ideia de identidade que trago comigo, para falar disso preciso falar de um bando de coisa que pode não fazer sentido em alguns momentos, mas que para mim é importante falar. A minha ideia de identidade está presa ao que veio antes de mim, para mim somos porque de fato alguém foi antes e ai é que começa a longa historia sobre a origem da minha família.
Na minha comunidade de origem até o ano de 2015 nem se ouvia pronunciar a palavra quilombo e os poucos moradores que ouviram antes da tal data tinha este lugar como algo bem distante, algo que nunca seria aqui. Eu no alto dos meus 28 anos então, já com algum conhecimento teórico (bem raso), mas não conhecia a definição de um remanescente de quilombo nem tão pouco poderia considerar que fazia parte de tal espaço, neste período meu avô Clemente José dos Santos (vô Keno), já havia falecido e nunca tinha falado sobre tal assunto para nós netos nem tão pouco com seus filhos, para situar as ideias seguintes do texto vale a pena dizer que meu vô é neto de Chico Véi e que boa parte dos atuais moradores da comunidade é desta mesma família, herdeiros do velho Chico Véi e que os ainda vivos já o conheceram velho.
Bom, acho que até ai deu pra confundir bastante as ideias, então partiremos ao que pode de alguma forma ajudar os leitores a refletir sobre a ideia de identidade e em retorno espero receber noticias dessas reflexões. Para mim, a identidade está cravada em nós conforme a historia de vida dos nossos antecessores, eu não pretendo com essa afirmação me estender ás noções de gênero, por exemplo, (e por favor) pois não faz parte ainda do meu pacote de reflexões, tô falando aqui e tentando esgotar minhas ideias sobre raça e pertencimento entre povos.
A comunidade onde vivo, segundo os moradores entrevistados no processo de autoatribuição como comunidade remanescente de quilombo, teve inicio com a vinda de Chico Véi para cá. O que relatam é que quando ele chegou a Baixa Grande as terras era ocupada por matas, a famosa mata virgem onde dizem que morador nenhum circulava depois do sol se escravar, tinham medo de muita coisa e entre um relato e outro confessam que até assombração existia por estas bandas. Chico Véi ao chegar a Baixa Grande construiu uma casa em frente á lagoa da comunidade, essa casa é chamada por todos que conheceram de fazenda grande, contam que lá além dos filhos de Chico viveram também muitos de seus netos alguns ainda vivos hoje. No meio do bocado de coisas interessantes que o povo de Baixa Grande relatou no momento da pesquisa, relataram que de lá da lagoa de Baixa Grande tiravam o sustento da família, buscavam água para manutenção da casa, lá também se banhavam e de lá saia o peixe que alimentava suas famílias acrescidos de farinha e feijão. O que podemos perceber nos relatos das entrevistas é que Chico Véi se organizou e através de sua organização possibilitou a existência de um povo hoje na comunidade de Baixa Grande, mas então observamos que em momento nenhum dos relatos as pessoas citaram o tal termo organização, eles relatam suas historias contando o sofrimento que foi existir e persistir nas terras de Baixa Grande e as vezes que tiveram que driblar as dificuldades para hoje estarem vivos e até mesmo para criarem os filhos.
No meio dos relatos foram muitas descobertas e o que gerou um estado de choque é como a comunidade de Baixa Grande é ligada como veias arteriais, se a gente decidisse desenhar a arvore genealógica da comunidade seriam muitos galhos, mas acredito que não necessitaríamos de duas raízes. Quando me refiro ao povo de Baixa Grande em relação a parentesco se resta duvidas sempre digo: - Deve ser parente, aqui todo mundo é parente. E essa identificação sempre existiu.
Voltando á ideia de identidade (sem nunca ter saído dela), a identidade de remanescente de quilombo para Baixa Grande sempre esteve presente entre seu povo, portanto o que não existia era o termo e isso me inquieta, porque os termos são criados de fora, assim como Chico Véi organizou a construção da comunidade e isso não existem relatos de que ele fez com base no que aconteceria futuramente, sempre foi do mesmo jeito nosso processo de identificação enquanto remanescente de quilombo. Sempre existiu certa separação da vizinhança em relação ao povo de Baixa Grande, eu mesmo nunca entendia porque isso acontecia, vou relatar um exemplo: Conforme os herdeiros de Chico Véi foram vendendo suas terras para estranhos que não se consideram negros (porque seu tom de pele lhe permite negar ou assumir uma identidade), e que por sinal dos relatos estas terras foram vendidas por preços baixíssimos, estes novos possuidores de terras baixa-grandenses iniciaram o processo de negação em fazer parte do território de Baixa Grande (para estes é possível negar, pois não são mesmo parte do povo de Baixa Grande), por fim o que existe é a diminuição do que em relatos dos mais velhos seria Baixa Grande, porque alguns que por não serem negros não querem nem por empatia fazer parte de Baixa Grande, não sei se o exemplo ajudou (acredito que não), o que quero dizer de fato é que a identidade de quem é de Baixa Grande já existe e isso independe de negar ou assumir, o mesmo vale para nós aqui da comunidade na questão cor/raça (chamem lá como queira), quem é de Baixa Grande NUNCA poderá negar sua cor, somos retintos e por sermos retintos somos considerados diferentes que não se perdem em canto nenhum, pois se são pretos assim, só podem ser de Baixa Grande, isso no meio de jargões horríveis para tratar com o povo daqui e assim durante minha infância me incomodou muito, se eu pudesse não seria de Baixa Grande pois me sentia mal em ser diminuída o tempo inteiro, mas nunca pude deixar de ser (minha identidade nunca me deixou), na adolescência como fui preterida por ter esta identidade, mas nunca foi possível negar e quantas vezes me causou suor de vergonha as piadinhas para mim e para aqueles que eram de Baixa Grande, por quantas vezes tive minha identidade inferiorizada por ser parte daquele povo... Quantas vezes? Foi com isso que aprendi que tem coisas que não dar para negar, coisas que não tem canto que der pra esconder e essas coisas que não tem canto que caiba como esconderijo é o que somos de verdade, coisas que se a gente falar que não somos vai ter uma plateia pra ri da gente. Mas ai vale escrever também que existiu um momento que não sei defini em que eu compreendi porque de nos julgarem inferior aos demais, e esse momento se deu no pós-partida do meu avô (vô Keno), não sei explicar, sei que depois que ele partiu para o outro plano compreendi muita coisa, descobrir muita coisa sobre minha ancestralidade e não existe texto que esgote o sentimento pelos meus ancestrais, pela terra que Chico Véi garantiu para nossa existência, pelo ar que posso respirar na minha comunidade, não tem texto nem explicação teórica que consuma este sentimento, o que posso com base nessa experiência é no máximo dizer que a identidade pode ser assumida em determinado momento e assumida na ideia de se engrandecer em ser parte daquele conjunto, como no meu caso que o que antes era fardo se tornou o melhor de mim. Talvez o que esteja dito em minhas palavras é que para nós pretos, quilombolas... não há espaço entre ser e  negar. Ainda que tentemos, no máximo iremos ser ridículos.
Eu quero citar outro exemplo bem recente: Estava em um determinado lugar e ouvir sem querer (ou querendo?) a conversa de alguns rapazes e na conversa um deles afirma ser parte de uma comunidade pobre e aos meus olhos, negra, e é logo surpreendido pelo colega que questiona não ser ele quem diz sempre não ser daquele lugar e o pobre na tentativa de esconder sua origem se vale da negação dizendo que não é mesmo de tal comunidade e usa o nome de uma comunidade vizinha para dizer ser a sua. O que acontece no meio da mangação dos rapazes é que aquele que tenta negar sua identidade, seu povo, é sempre visto como inferior e subalterno por está tentando introduzi-se em um mundo onde seu corpo é estranho, e no meio do desconforto de ser quem é ele sempre continuará sendo quem é apesar das diversas tentativas de fuga. Todo esse acontecimento é reflexo dos estereótipos ligados á população negras e pobres na tentativa de diminuir a autoestima desta e que infelizmente tem força em especial entre adolescentes e jovens e que se fortalece com base na falta de conhecimento de suas origens, quando a historia de um povo é negada facilita para que seus ancestrais não sejam amados.
Acho bom dar uma pressão nas ideias para acabar o texto, quando Chico Véi iniciou na comunidade o processo de resistência garantindo sua própria existência, a de filhos, netos e assim por seguinte, ele nem imaginava o conceito que caracteriza um quilombo, ou talvez se imaginasse sua organização enquanto um espaço quilombola fez isso sem passar estas ideias para os netos, pois nas conversas que tive a honra em ter com eles nenhum tem conhecimento de que o avô se organizou pensando um quilombo e o quilombo de Baixa Grande existe como fruto da resistência de Chico Véi depois veio outros homens e mulheres que contribuíram para que estejamos aqui hoje, mas naquele inicio o que contam é que Chico Véi deu o primeiro passo e trouxe outros. No entanto, a passagem de Chico Véi por Baixa Grande sem se afirmar enquanto quilombola não diminui sua identidade enquanto tal e seguido por ele tiveram vários outros homens e mulheres que por aqui passaram antes mesmo da atribuição da comunidade enquanto remanescente de quilombo, mas que em nada são diferentes dos outros de Baixa Grande que hoje vive e que se consideram quilombolas. Com esse bando de loucura o que eu quero dizer é que existe muita coisa entre um texto e o que os sujeitos pensam de si no modo de pertencimento identitário e aqui estou falando com base em minha identidade e pertencimento enquanto parte do povo de Baixa Grande, nossa historia está mesmo alem de tudo isso e esse bocado de definição que nós fazemos com base na ciência é que confunde tudo, é muito difícil fazer ciência e pensar a gente mesmo.

                       

Espero gerar reflexões, discordâncias, concordâncias e receber textinhos de volta

Um texto de: Edna Balbina dos Anjos dos Santos

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