Autora: Edna Balbina dos Anjos dos Santos[1]
Semana passada durante o encontro do Novas
Cartografias Sociais que aconteceu em Juazeiro Estado da Bahia, pude iniciar
uma reflexão alterada sobre a ideia de identidade que trago comigo, para falar
disso preciso falar de um bando de coisa que pode não fazer sentido em alguns
momentos, mas que para mim é importante falar. A minha ideia de identidade está
presa ao que veio antes de mim, para mim somos porque de fato alguém foi antes
e ai é que começa a longa historia sobre a origem da minha família.
Na minha comunidade de origem até o ano de 2015 nem
se ouvia pronunciar a palavra quilombo e os poucos moradores que ouviram antes
da tal data tinha este lugar como algo bem distante, algo que nunca seria aqui.
Eu no alto dos meus 28 anos então, já com algum conhecimento teórico (bem
raso), mas não conhecia a definição de um remanescente de quilombo nem tão
pouco poderia considerar que fazia parte de tal espaço, neste período meu avô
Clemente José dos Santos (vô Keno), já havia falecido e nunca tinha falado
sobre tal assunto para nós netos nem tão pouco com seus filhos, para situar as
ideias seguintes do texto vale a pena dizer que meu vô é neto de Chico Véi e
que boa parte dos atuais moradores da comunidade é desta mesma família,
herdeiros do velho Chico Véi e que os ainda vivos já o conheceram velho.
Bom, acho que até ai deu pra confundir bastante as
ideias, então partiremos ao que pode de alguma forma ajudar os leitores a
refletir sobre a ideia de identidade e em retorno espero receber noticias
dessas reflexões. Para mim, a identidade está cravada em nós conforme a
historia de vida dos nossos antecessores, eu não pretendo com essa afirmação me
estender ás noções de gênero, por exemplo, (e por favor) pois não faz parte
ainda do meu pacote de reflexões, tô falando aqui e tentando esgotar minhas
ideias sobre raça e pertencimento entre povos.
A comunidade onde vivo, segundo os moradores
entrevistados no processo de autoatribuição como comunidade remanescente de
quilombo, teve inicio com a vinda de Chico Véi para cá. O que relatam é que
quando ele chegou a Baixa Grande as terras era ocupada por matas, a famosa mata
virgem onde dizem que morador nenhum circulava depois do sol se escravar,
tinham medo de muita coisa e entre um relato e outro confessam que até
assombração existia por estas bandas. Chico Véi ao chegar a Baixa Grande
construiu uma casa em frente á lagoa da comunidade, essa casa é chamada por
todos que conheceram de fazenda grande, contam que lá além dos filhos de Chico
viveram também muitos de seus netos alguns ainda vivos hoje. No meio do bocado
de coisas interessantes que o povo de Baixa Grande relatou no momento da
pesquisa, relataram que de lá da lagoa de Baixa Grande tiravam o sustento da
família, buscavam água para manutenção da casa, lá também se banhavam e de lá
saia o peixe que alimentava suas famílias acrescidos de farinha e feijão. O que
podemos perceber nos relatos das entrevistas é que Chico Véi se organizou e
através de sua organização possibilitou a existência de um povo hoje na
comunidade de Baixa Grande, mas então observamos que em momento nenhum dos
relatos as pessoas citaram o tal termo organização, eles relatam suas historias
contando o sofrimento que foi existir e persistir nas terras de Baixa Grande e
as vezes que tiveram que driblar as dificuldades para hoje estarem vivos e até
mesmo para criarem os filhos.
No meio dos relatos foram muitas descobertas e o
que gerou um estado de choque é como a comunidade de Baixa Grande é ligada como
veias arteriais, se a gente decidisse desenhar a arvore genealógica da
comunidade seriam muitos galhos, mas acredito que não necessitaríamos de duas
raízes. Quando me refiro ao povo de Baixa Grande em relação a parentesco se
resta duvidas sempre digo: - Deve ser parente, aqui todo mundo é parente. E
essa identificação sempre existiu.
Voltando á ideia de identidade (sem nunca ter saído
dela), a identidade de remanescente de quilombo para Baixa Grande sempre esteve
presente entre seu povo, portanto o que não existia era o termo e isso me
inquieta, porque os termos são criados de fora, assim como Chico Véi organizou
a construção da comunidade e isso não existem relatos de que ele fez com base
no que aconteceria futuramente, sempre foi do mesmo jeito nosso processo de
identificação enquanto remanescente de quilombo. Sempre existiu certa separação
da vizinhança em relação ao povo de Baixa Grande, eu mesmo nunca entendia
porque isso acontecia, vou relatar um exemplo: Conforme os herdeiros de Chico
Véi foram vendendo suas terras para estranhos que não se consideram negros
(porque seu tom de pele lhe permite negar ou assumir uma identidade), e que por
sinal dos relatos estas terras foram vendidas por preços baixíssimos, estes
novos possuidores de terras baixa-grandenses iniciaram o processo de negação em
fazer parte do território de Baixa Grande (para estes é possível negar, pois
não são mesmo parte do povo de Baixa Grande), por fim o que existe é a
diminuição do que em relatos dos mais velhos seria Baixa Grande, porque alguns
que por não serem negros não querem nem por empatia fazer parte de Baixa
Grande, não sei se o exemplo ajudou (acredito que não), o que quero dizer de
fato é que a identidade de quem é de Baixa Grande já existe e isso independe de
negar ou assumir, o mesmo vale para nós aqui da comunidade na questão cor/raça
(chamem lá como queira), quem é de Baixa Grande NUNCA poderá negar sua cor,
somos retintos e por sermos retintos somos considerados diferentes que não se
perdem em canto nenhum, pois se são pretos assim, só podem ser de Baixa Grande,
isso no meio de jargões horríveis para tratar com o povo daqui e assim durante
minha infância me incomodou muito, se eu pudesse não seria de Baixa Grande pois
me sentia mal em ser diminuída o tempo inteiro, mas nunca pude deixar de ser
(minha identidade nunca me deixou), na adolescência como fui preterida por ter
esta identidade, mas nunca foi possível negar e quantas vezes me causou suor de
vergonha as piadinhas para mim e para aqueles que eram de Baixa Grande, por
quantas vezes tive minha identidade inferiorizada por ser parte daquele povo...
Quantas vezes? Foi com isso que aprendi que tem coisas que não dar para negar,
coisas que não tem canto que der pra esconder e essas coisas que não tem canto
que caiba como esconderijo é o que somos de verdade, coisas que se a gente
falar que não somos vai ter uma plateia pra ri da gente. Mas ai vale escrever
também que existiu um momento que não sei defini em que eu compreendi porque de
nos julgarem inferior aos demais, e esse momento se deu no pós-partida do meu
avô (vô Keno), não sei explicar, sei que depois que ele partiu para o outro
plano compreendi muita coisa, descobrir muita coisa sobre minha ancestralidade
e não existe texto que esgote o sentimento pelos meus ancestrais, pela terra
que Chico Véi garantiu para nossa existência, pelo ar que posso respirar na
minha comunidade, não tem texto nem explicação teórica que consuma este
sentimento, o que posso com base nessa experiência é no máximo dizer que a
identidade pode ser assumida em determinado momento e assumida na ideia de se
engrandecer em ser parte daquele conjunto, como no meu caso que o que antes era
fardo se tornou o melhor de mim. Talvez o que esteja dito em minhas palavras é
que para nós pretos, quilombolas... não há espaço entre ser e negar. Ainda que tentemos, no máximo iremos
ser ridículos.
Eu quero citar outro exemplo bem recente: Estava em
um determinado lugar e ouvir sem querer (ou querendo?) a conversa de alguns
rapazes e na conversa um deles afirma ser parte de uma comunidade pobre e aos
meus olhos, negra, e é logo surpreendido pelo colega que questiona não ser ele
quem diz sempre não ser daquele lugar e o pobre na tentativa de esconder sua
origem se vale da negação dizendo que não é mesmo de tal comunidade e usa o
nome de uma comunidade vizinha para dizer ser a sua. O que acontece no meio da
mangação dos rapazes é que aquele que tenta negar sua identidade, seu povo, é
sempre visto como inferior e subalterno por está tentando introduzi-se em um
mundo onde seu corpo é estranho, e no meio do desconforto de ser quem é ele
sempre continuará sendo quem é apesar das diversas tentativas de fuga. Todo
esse acontecimento é reflexo dos estereótipos ligados á população negras e
pobres na tentativa de diminuir a autoestima desta e que infelizmente tem força
em especial entre adolescentes e jovens e que se fortalece com base na falta de
conhecimento de suas origens, quando a historia de um povo é negada facilita
para que seus ancestrais não sejam amados.
Acho bom dar uma pressão nas ideias para acabar o
texto, quando Chico Véi iniciou na comunidade o processo de resistência
garantindo sua própria existência, a de filhos, netos e assim por seguinte, ele
nem imaginava o conceito que caracteriza um quilombo, ou talvez se imaginasse
sua organização enquanto um espaço quilombola fez isso sem passar estas ideias
para os netos, pois nas conversas que tive a honra em ter com eles nenhum tem
conhecimento de que o avô se organizou pensando um quilombo e o quilombo de
Baixa Grande existe como fruto da resistência de Chico Véi depois veio outros
homens e mulheres que contribuíram para que estejamos aqui hoje, mas naquele
inicio o que contam é que Chico Véi deu o primeiro passo e trouxe outros. No
entanto, a passagem de Chico Véi por Baixa Grande sem se afirmar enquanto
quilombola não diminui sua identidade enquanto tal e seguido por ele tiveram
vários outros homens e mulheres que por aqui passaram antes mesmo da atribuição
da comunidade enquanto remanescente de quilombo, mas que em nada são diferentes
dos outros de Baixa Grande que hoje vive e que se consideram quilombolas. Com
esse bando de loucura o que eu quero dizer é que existe muita coisa entre um
texto e o que os sujeitos pensam de si no modo de pertencimento identitário e
aqui estou falando com base em minha identidade e pertencimento enquanto parte
do povo de Baixa Grande, nossa historia está mesmo alem de tudo isso e esse
bocado de definição que nós fazemos com base na ciência é que confunde tudo, é
muito difícil fazer ciência e pensar a gente mesmo.
“Espero gerar reflexões, discordâncias, concordâncias
e receber textinhos de volta“
Um texto de: Edna Balbina dos Anjos dos Santos
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